Abuso de direito de patente – Licença compulsória
6 de maio de 2018
Alberto Camelier
I – INTRODUÇÃO
Nos dias atuais, não se pode mais falar na livre fruição de Direitos de Propriedade Industrial sem levar em consideração o Direito Constitucional e a interface que há com outros ramos do Direito, especialmente o Direito Concorrencial e o Direito do Consumidor.
O Direito Industrial tutela o que se convencionou chamar de monopólio legal (patentes, desenhos industriais e marcas), institutos jurídicos que em tese afastariam ou derrogariam o direito da concorrência, por conceder exclusividade de uso e gozo aos seus titulares em detrimento de todos os demais concorrentes.
Entretanto, a doutrina já há muito vem aceitando examinar essa questão à luz do interesse público, acima do privado. Logo, o detentor de uma patente, por exemplo, haverá de carregar o múnus de observar o interesse social no uso do monopólio legal, não podendo utilizá-lo a seu livre alvedrio, fato que, em determinadas circunstâncias, poderá se caracterizar abuso de direito.
Desde Roma antiga, a fruição de direitos deve obedecer alguns parâmetros, não se permitindo, contudo o Jus abutendi, vale dizer, o direito de ter a livre disposição da coisa à vontade de seu dono.
Hodiernamente, o abuso de direito é ilícito civil e está capitulado no artigo 187 do Código Civil brasileiro, in verbis:
Art. 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
O presente ensaio tratará da licença compulsória de patentes, por abuso de direito e abuso de poder econômico, modalidades previstas nos artigos 68 a 74 da Lei de Propriedade Industrial, Lei nº 9.279/96.
II – A LICENÇA COMPULSÓRIA NA LEGISLAÇÃO AO LONGO DO TEMPO
A partir do texto da revisão de Haia da Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial (Convenção da União de Paris), Tratado Internacional que veio à lume em 1883, o legislador convencional se preocupou em estabelecer regras para salvaguardar o direito de exclusividade conferido às patentes, mormente em relação a caducidade ou quebra do monopólio, por Estados-Membros, em razão do desuso ou abuso de direito.
“Assim é que o texto da Convenção da União de Paris de 20 de março de 1883, em seu artigo V (na Revisão de Haia de 06 de novembro de 1925, originalmente ratificada pelo Brasil), já previa que: “ A introdução, que fizer o proprietário da patente, no paiz onde tiver sido expedida a patente, de objetos fabricados em um ou em outro dos paízes da União, não importará em caducidade.
Apesar disso, cada um dos países contratantes terá a faculdade de adoptar as medidas legislativas necessárias à prevenção dos abusos que puderem resultar do exercício do direito exclusivo conferido pela patente, por exemplo, por falta de uso effectivo.
Essas medidas não poderão prever a caducidade da patente, a não ser que a concessão de licenças obrigatórias não seja suficiente para prevenir esses abusos.”
Antes mesmo da adoção, pelo Brasil, da Convenção da União de Paris, o abuso, pelo titular da patente, do direito de uso exclusivo, já era coibido pela lei brasileira de 1882 (Lei nº 3.129, de 1882, art. 5º), conforme nos informa o eminente Tratadista da Propriedade Industrial, João da Gama Cerqueira:
Artigo 5º: “Entende-se por uso, nestes dois casos, o efetivo exercício da indústria privilegiada e o fornecimento dos produtos na proporção de seu emprego ou consumo” .
Após essa lei, sobreveio o Decreto nº 16.264, de 1923, o qual dispunha em seu artigo 67 uma espécie de desapropriação territorial limitada da patente “quando fosse provado que o fornecimento dos produtos patenteados não atendiam satisfatoriamente a demanda em determinadas regiões” .
O Código da Propriedade Industrial de 1945 (Decreto-Lei nº 7.903, de 27.08.1945) previa no artigo 53, a possibilidade de licença obrigatória para explorar a invenção, na hipótese de o inventor não a explorar depois de decorridos 02 (dois) anos da concessão da patente ou houvesse interrompido o uso por tempo superior a dois anos.
A exploração da patente, segundo a legislação da época, deveria ser efetiva, ou seja, real.
Sobre isso, prelecionou o saudoso mestre João da Gama Cerqueira:
“O fim da lei ao impor ao concessionário da patente o uso efetivo da invenção, é permitir que a sociedade dela retire os benefícios que é suscetível de proporcionar, é fazer com que a coletividade goze e desfrute as vantagens e os resultados da invenção. Por isso, exige que o seu uso ou exploração seja real, efetivo e permanente.”
O Código da Propriedade Industrial de 1971 (Lei nº 5.772/71) tratou da matéria nos artigos 33 a 38, basicamente estendendo para 03 (três) anos o prazo que o titular da patente tinha para explorar o seu invento sob pena da concessão de licença obrigatória (art.33).
Ademais, o parágrafo único do art. 33 previa que por motivo de interesse público, poderia ser concedida licença obrigatória especial, não exclusiva, para a exploração de privilégio em desuso ou cuja exploração efetiva não atenda a demanda do mercado.
Após o CPI de 1971, sobreveio o acordo TRIPs.
O Acordo internacional sobre Propriedade Intelectual relativo ao comércio, denominado TRIPs (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), em vigor no ordenamento jurídico brasileiro por força do Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994, reeditou, no art. 31, a possibilidade de concessão de licenças compulsórias com o fim de elidir abusos de direitos.
Maristela Basso, comentando este artigo em sua obra “O Direito Internacional da Propriedade Intelectual”, vaticina: “O art. 31 do TRIPs não restringe a possibilidade das legislações nacionais em determinar outras condições de outorga das licenças obrigatórias. Mesmo que este artigo se refira a certos motivos específicos como: emergência nacional, circunstância de extrema urgência, práticas anticompetitivas, patentes dependentes, etc., estes não servem de limites ao poder dos Estados-Partes de aplicar outros remédios para outras situações” .
Atualmente, a matéria é regida pelos artigos 68 a 74, da Lei da Propriedade Industrial, Lei nº 9.279, de 14.05.1996.
A Lei nº 9.279/96 procurou recepcionar os ditames do acordo TRIPs, especialmente aqueles previstos no artigo 31, acima mencionado.
Malgrado isso, se tornou público o painel aberto pelos Estados Unidos da América, em 2001, contra a Lei de Propriedade Industrial brasileira, acusando-a de desrespeitar o acordo TRIPs, inter alia, com relação ao tratamento conferido aos titulares de patentes norte-americanos relativo a licença compulsória.
Adriana Gomes Brunner assinou excelente ensaio, publicado na especializada Revista da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, no qual comenta o fato de os Estados Unidos terem requerido, em 08 de janeiro de 2001, junto à Organização Mundial de Comércio, o estabelecimento de um painel para solucionar a controvérsia com o Brasil acerca das licenças compulsórias previstas na legislação ordinária brasileira.
No mencionado artigo, a especialista em Propriedade Intelectual assim dispôs:
“O interesse dos Estados Unidos, no entanto, estava diretamente ligado ao acesso a um amplo mercado, em que as questões relacionadas à propriedade industrial, exatamente aqueles segmentos como tecnologia, química, alimentos, etc., eram de suma importância.”
Com o tempo, e a pressão que o governo brasileiro fez em âmbito internacional, os Estados Unidos desistiram do painel, firmando um acordo com o Brasil no qual este se comprometia a informar previamente Washington sobre a intenção de licenciar compulsoriamente patentes de interesse dos nacionais daquele.
III – A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E O ABUSO DO PODER ECONÔMICO
Considerando que o monopólio legal é, sem sombra de dúvida, um favor do Estado ao inventor/titular, há que haver uma justa contraprestação pelo privilégio. E esta contraprestação encontra-se inserida na constituição federal e na legislação infraconstitucional.
Ao mesmo tempo em que o legislador constitucional conferiu proteção ao direito de propriedade, condicionou a sua fruição observado o interesse social. No tocante à propriedade industrial, especialmente às patentes, além do interesse social, condicionou também sua proteção e exclusividade de uso ao desenvolvimento tecnológico e econômico do País.
Nesse sentido, assim dispõe a Constituição da República no artigo 5º, inciso XXIX, in verbis:
Art. 5º omissis
XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País. (nosso destaque)
Como o monopólio legal restringe a liberdade de concorrência, as patentes não estão livres do controle estatal sobre eventuais abusos de direito ou de poder econômico.
A Lei 8.884, de 11 de junho de 1994 previu a possibilidade de sancionar tais abusos. Diz o seu artigo 1º:
1º Esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.
Parágrafo único. A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei.
Como dito supra, a licença compulsória está disciplinada nos artigos 68 a 74 da Lei de Propriedade Industrial, Lei nº 9.279 de 14 de maio de 1996.
A Lei de Propriedade Industrial prevê em seu artigo 68:
Art. 68. O titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial.
Por seu turno, a Lei de Defesa da Concorrência prevê em seus artigos 20, 21 e incisos:
Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
II – dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III – aumentar arbitrariamente os lucros;
IV – exercer de forma abusiva posição dominante
Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:
XVI – açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia
XX – interromper ou reduzir em grande escala a produção, sem justa causa comprovada;
XXI – cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa comprovada
XXIV – impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa o preço de bem ou serviço.
Logo, se o titular de uma patente abusar do direito a ela conferido, seja porque não a utilizou por determinado tempo; seja porque se recusou a contratar; ou aumentou demasiadamente e injustificadamente o preço do produto patenteado; ou impôs predação tecnológica; ou se recusou a firmar licença com patente dependente, entre outros abusos, estará sujeito a ter sua patente licenciada compulsoriamente ex-officio ou a requerimento de terceiros interessados.
A rigor, esta penalidade já se encontrava prevista na Lei nº 8884/94, antes do advento da Lei de Propriedade Industrial atual, no artigo 24, inciso IV, alínea “a”, senão vejamos:
Art. 24. Sem prejuízo das penas cominadas no artigo anterior, quando assim o exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isolada ou cumulativamente:
I -omissis
II – omissis
III – omissis
IV – a recomendação aos órgãos públicos competentes para que:
- a) seja concedida licença compulsória de patentes de titularidade do infrator
Importante destacar que é o CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica – o órgão da República encarregado pela lei para analisar e recomendar a licença compulsória, sendo o INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial, o órgão federal incumbido de executar o processamento de dita licença.
Segundo nos informa Denis Borges Barbosa, por intermédio de um artigo, retirado da Internet, intitulado “Nota sobre a Licença Compulsória Monsanto de 1983”, no Brasil só há notícia de uma única licença compulsória de patentes.
Cumpre aqui lembrar um caso histórico ocorrido nos Estados Unidos, relatado por Edwin Black, em sua interessante obra: IBM E O HOLOCAUSTO
“Pouco depois do recenseamento de 1900, o Governo Federal constatou que havia ajudado a Tabulating Machine Company de Hollerith a se tornar monopólio global, com base numa invenção que, sob certo aspecto, o próprio Census Bureau havia ‘encomendado’ a alguém que constava de sua própria folha de pagamento, Herman Hollerith. Além disso, o novo diretor do Census Bureau, Simeon North, de mentalidade reformista, descobriu numerosas irregularidades nos contratos do Bureau referentes às máquinas de cartão perfurado. Hollerith estava extorquindo o governo federal. Royalties excessivos, máquinas fantasmas, preços inconsistentes para máquinas e cartões perfurados, esquemas de restrição de uso – descobrira-se toda uma gama de abusos pelo fornecedor.
Pior ainda, em vez de dispensar ao Bureau o melhor tratamento, a Tabulating Machine Company cobrava preços menores de outros clientes governamentais e privados” .
Como se pode ver, o tema de abuso de direito de patente não é novo, ensejando sempre a intervenção legislativa e a vigilância estatal, para que seja assegurado o direito concorrencial.
IV – CONCLUSÃO
Vimos que o direito concorrencial e o interesse social permeiam a propriedade industrial e os direitos dos titulares das patentes concedidas.
O abuso de direito e o abuso de poder econômico devem ser controlados pela sociedade e pelo Estado.
A licença compulsória é um instituto jurídico importante e regulador das forças de mercado, diminuindo a assimetria existente entre o detentor do monopólio legal e a sociedade.
“A patente, como qualquer situação de poder no mercado, pode gerar abusos, que devem ser coibidos. O direito industrial passa, então a incluir nesse aspecto uma disciplina específica do abuso de poder.”
“Pero no solamente el derecho absoluto está limitado temporalmente; El derecho quiere que el invento sea puesto en práctica, principio este que ya se encuentra en las leyes vénetas del Renacimiento y que claramente se afirma en la ley francesa de 1791. Ciertamente, sólo mediante su puesta en práctica el invento se traduce en beneficios para la comunidad, pues si pudiese no ser explotado la tutela concedida serviría únicamente para retrasar la utilización general y, en ese caso, para impedir, precisamente, ese progresso que podría derivarse de la puesta en práctica del invento” .
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